domingo, 8 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - O MENINO MAL ASSOMBRADO - 1ª PARTE


O MENINO MAL-ASSOMBRADO


O pai, João Cândido Xavier, balançava a cabeça e resmungava. É louco.

A madrinha, Rita de Cássia, reagia às alucinações do menino com golpes de vara de marmelo. Entre uma surra e outra, enterrava garfos na barriga do afilhado e berrava:

- Este moleque tem o diabo no corpo.

Nem o padre Sebastião Scarzello conseguiu fazer de Chico Xavier um garoto "normal".

Após as confissões, preces e penitências, Chico tagarelava com a mãe já morta, via hóstias cintilantes na comunhão, escrevia na sala de aula textos ditados por seres invisíveis e tornava-se, assim, o assunto mais exótico da cidade. Na empoeirada e católica Pedro Leopoldo, a 35 quilômetros de Belo Horizonte, era difícil encontrar quem apostasse na sanidade de Chico Xavier.

Para espantar o diabo e pagar os pecados, o garoto seguia à risca as receitas paroquiais.

Chegou a desfilar em procissão com uma pedra de quinze quilos na cabeça e a repetir mil vezes seguidas a ave maria. Rezava e contava. Não foi fácil. Um espírito desocupado fazia caras e bocas para atrapalhar seus cálculos.

Na igreja, assombrações flutuavam sobre os bancos e beijavam os santos.

Chico divulgava estas e outras histórias do outro mundo para os adultos.

Resultado: mais surras e mais risco de ser transferido de Pedro Leopoldo para Barbacena, a capital dos hospícios.

João Cândido estudava com carinho a hipótese de internar o filho. Uma idéia antiga.

A Primeira Guerra Mundial começava a assombrar o mundo, e Chico já estava às voltas com fantasmas. Uma noite, seu pai conversava com a mulher, Maria João de Deus, sobre o aborto sofrido por uma vizinha, e desancava a moça. O filho interrompeu o julgamento e, do alto de seus quatro anos, proferiu a sentença:

- O senhor está desinformado sobre o assunto.

O que houve foi um problema de nidação inadequada do ovo, de modo que a criança adquiriu posição ectópica.

Naquela casa pobre de Pedro Leopoldo, a frase soava tão fora de propósito quanto à notícia de que, na longínqua Europa, a Alemanha acabava de declarar guerra à Rússia.

João Cândido arregalou os olhos e balbuciou:

- O que é nidação? O que é ectópica?

Chico não sabia. Tinha repetido palavras sopradas por uma voz.

Os amigos da família Xavier, aqueles que desconheciam o discurso médico feito pelo menino aos quatro anos, arriscavam uma explicação para as alucinações de Chico: a morte da mãe, quando ele tinha cinco anos. Maria João de Deus foi embora cedo demais e, ao se despedir, deixou em casa um garoto ao mesmo tempo magoado e impressionado.

Pouco antes de morrer, ela pediu ao marido que distribuísse os nove filhos pelas casas de amigos e parentes. Só assim João Cândido, vendedor de bilhetes de loteria, conseguiria viajar pelas cidades vizinhas em busca de dinheiro.

No pé da cama onde a mãe agonizava, atormentada por crises de angina, Chico cobrou:

- Por que a senhora está dando seus filhos para os outros? Não quer mais a gente, é isso?

Maria explicou que iria para o hospital e garantiu com voz firme:

- Se alguém falar que eu morri, é mentira. Não acredite. Vou ficar quieta, dormindo. E voltarei.

Chico acreditou. No dia seguinte, a mãe morreu e João Cândido entregou à madrinha, Rita de Cássia, um menino com idéias estranhas.

Depois do enterro de Maria João de Deus, em 29 de setembro de 1915, o garoto teve que esticar as pernas para acompanhar a madrinha. Na volta do cemitério, ela não encurtou os passos para andar de mãos dadas com o afilhado, como fazia a mãe dele. Ofegante, o menino alcançou Rita, mas o esforço foi um desperdício. Sua mão ficou balançando a procura dos dedos da madrinha.

- Ainda hoje sinto no braço a sensação do vazio, da procura inútil lamentou Chico, 65 anos depois, já conformado. Foi minha educadora.

Se a dor ensina, Rita de Cássia foi mesmo uma professora exemplar. Chico Xavier recebeu aulas diárias durante os dois anos em que morou com ela e o marido, o comerciante José Felizardo Sobrinho, sempre ausente. Logo nos primeiros dias, enfrentou o primeiro teste. Bastou uma ida ao banheiro para encontrar, na volta, a cama ensopada de urina. A madrinha perguntou o que tinha acontecido. Chico, sem culpa no cartório e com a cabeça cheia de sermões católicos, nem titubeou. Jogou a culpa no diabo.

A surra foi demorada. Ele nem imaginava, mas o responsável pela sujeira tinha sido seu vizinho de cama, Moacir, de doze anos, sobrinho tratado como filho por Rita.

O garoto tinha derramado um penico sobre o lençol.

Chico apanhava e queria rezar. Aos cinco anos, já sabia o pai nosso de cor. Foi criado em meio a preces. Quando ele tinha dois anos, Maria João de Deus já apontava o céu estrelado e dizia:

- Foi Deus quem fez tudo isso.

Às vezes, exibia um retrato de Jesus e alertava:

- A maior ofensa que podemos fazer à nossa consciência é negar a existência de Deus. A mãe reunia os filhos para a oração da noite, confessava aos sábados, comungava aos domingos.

Na casa da madrinha, as rezas eram raras e as surras, fartas.

Numa delas, Rita se empolgou e enfiou com força demais o garfo na barriga do afilhado. A ferida demorou a cicatrizar e, para evitar o atrito da pele com a roupa, a madrinha obrigou o menino a usar uma espécie de camisola conhecida como mandrião, vestida por meninas e confeccionada com tecido de ensacar farinha.

Para piorar, o pano ainda tinha listras azuis. Os vizinhos se divertiram com a fantasia.

Nos anos 50, foi apontado por alguns amigos como o precursor da moda saco, um sucesso na época.

O menino não conseguia achar graça. Chorava muito e só tinha sossego quando a madrinha tomava o rumo da estação para ver o trem de luxo passar. Ela adorava admirar os passageiros da primeira classe. Tão chiques, tão belle époque.

Numa das escapadelas de Rita, Chico correu para o quintal e se ajoelhou embaixo de uma bananeira. Repetia o pai nosso quando, de repente, viu na sua frente Maria João de Deus.

Até que enfim. Ela cumpriu o prometido. Adeus surras e garfos.

Chico se agarrou à recém chegada e pediu socorro.

- Carregue-me com a senhora, não me deixe aqui, eu estou apanhando muito.

A aparição desfez as ilusões do desesperado.

- Tenha paciência. Quem não sofre não aprende a lutar. Se você parar de reclamar e tiver paciência, Jesus ajudará para que estejamos sempre juntos.

Em seguida, evaporou. Chico ficou ali, no quintal, sozinho, gritando pela mãe.

Daquele dia em diante, apanhou calado, sem chorar, para desespero da madrinha, que adotou um novo grito de guerra:

- Além de louco, é cínico.

O menino se defendia da acusação com um argumento absurdo. Toda vez que suportava as surras em silêncio, com paciência, via sua mãe. A vara de marmelo zunia, Chico engolia o choro e depois se refugiava no quintal para ouvir os surrados conselhos maternos: era preciso sofrer resignado, era fundamental obedecer sempre, porque logo um anjo bom apareceria para ajudá-lo. O menino ficava esperando.

Numa tarde, a "educadora" Rita de Cássia brindou o aluno com uma prova surpresa.

Moacir, primo de Chico, apareceu com uma ferida na perna esquerda. Fleming ainda não tinha descoberto a penicilina e o machucado não cicatrizava. A madrinha, preocupada com o sobrinho, mandou chamar dona Ana Batista, uma benzedeira de Matuto, hoje Santo Antônio da Barra, cidade vizinha de Pedro Leopoldo. A curandeira examinou o ferimento e aviou a receita. Só uma simpatia daria jeito.

Uma criança deve lamber a ferida três sextas-feiras seguidas, pela manhã, em jejum.

- Chico serve? perguntou a madrinha.

O garoto ficou em pânico. Correu para debaixo das bananeiras e ouviu o repetido conselho materno:

- Você deve obedecer. Mais vale lamber feridas que aborrecer os outros. Você é uma criança e não deve contrariar sua madrinha.

- E isso vai curar o Moacir?

- Não, porque não é remédio. Mas dará bom resultado para você, porque a obediência acalmará sua madrinha.

Chico perdeu a paciência. Por que sua mãe não voltava para casa? Onde estava o tal anjo bom?

A aparição acalmou o menino:

- Seja humilde. Se você lamber a ferida, faremos o remédio para curá-la.

No dia seguinte, pela manhã e em jejum, Chico iniciou a missão. Fechava os olhos, pedia forças à mãe e lambia a perna do garoto. O gosto era amargo e ele só queria ter a língua maior para acabar logo com o suplício. Na terceira sexta-feira, o ferimento estava cicatrizado. Pela primeira vez, Rita de Cássia elogiou o afilhado:

- Muito bem, Chico. Você obedeceu direitinho. Louvado seja Deus.

O menino não sabia, mas passaria a vida lambendo feridas alheias.

As aulas na casa de Rita de Cássia terminaram dois meses depois, quando João Cândido Xavier se casou com Cidália Batista. A primeira medida da mulher foi recolher os nove filhos do primeiro casamento do marido, dispersos pelas casas de parentes e amigos.

Chico chegou por último. Quando apareceu, enfiado num camisolão, foi recebido com curiosidade por Cidália. Ela reparou na barriga inchada do menino e tentou levantar sua roupa para examinar o abdômen. Não conseguiu. Chico, então com sete anos, se desvencilhou, tímido. Havia gente demais em volta.

Cidália o pegou pela mão e o tirou da sala, a passos lentos, no ritmo de Maria João de Deus.

A sós, a mulher de João Cândido levantou o camisolão do garoto e levou um susto ao deparar com a ferida aberta a garfadas.

- Enquanto eu viver, ninguém mais vai pôr as mãos em você.

Diante da promessa, Chico teve certeza: aquele era o tal anjo anunciado pela mãe.

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: