sexta-feira, 20 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER- O APRINDIZ DE CURANDEIRO - PARTE 5


CONTINUAÇÃO

só assim ele conseguiria passar para o papel, sem trair a "realidade ", o clima descrito pelo espírito.
O psiquiatra Alberto Lyra arriscou um diagnóstico para casos como esse narrados por Chico Xavier. Em depoimento à revista Realidade, afirmou, já em 1971: "Uma pessoa, contando repetidas vezes um episódio e obtendo para ele o consenso de seu meio, acaba acreditando que ele é de fato verdadeiro, e nunca mais duvidará de que assim seja  ".
Alguns parapsicólogos, como o padre Quevedo, defenderiam a tese de "autohipnose ", capaz de levar Chico ao próprio subconsciente. Diante dos céticos, o rapaz tentaria manter uma postura: a de respeito. "Ninguém é obrigado a acreditar nos fenômenos ", diria aos espíritas indignados com a descrença alheia.
No início, diante das primeiras críticas, ele ficava irritado.
Emmanuel deu um jeito nele com algumas frases contundentes:
- Seu ressentimento é pura vaidade. Você não pode exigir que os outros acreditem naquilo em que você acredita. Ninguém precisa seguir a sua cartilha.
Logo após escrever Nosso Lar, seu décimo nono livro, o próprio Chico quis estudar Psicografia. Pediu a opinião de Emmanuel e foi atendido com uma metáfora bucólica:
- Se a laranjeira quisesse estudar o que se passa com ela na produção das laranjas, com certeza não produziria fruto algum. Vamos trabalhar como se amanhã já não fosse possível fazer nada. Para nós, o que interessa agora é trabalhar.
Chico trabalhava como um louco. Se estivesse no tal Nosso Lar, teria acumulado bateladas de bônus. O trabalho, para ele, era uma obsessão e uma terapia.
Bastava acordar de suas três ou quatro horas de sono diário, quase sempre turbulento, para ser surpreendido por frases e mais frases. Era incontrolável, compulsivo.
Com a cabeça cheia, saltava até a escrivaninha, esparramava parágrafos às pressas no papel e corria para a Fazenda Modelo. À noite, ia para o Centro. Não podia perder tempo.
Depois do almoço, costumava passar vinte minutos à toa, à espera da charrete que o levaria de volta à Fazenda Modelo. O charreteiro sempre se atrasava. Numa tarde, ouviu a voz do poeta Casimiro Cunha, morto em 1914. Ele estava disposto a ditar um livro por dia ao datilógrafo nesses intervalos. Chico engolia a comida, corria para o quarto, se debruçava sobre as páginas em branco. Sua irmã fazia discursos sobre os malefícios de ler e escrever após comer e ele colocava no papel seu décimo oitavo livro.
Cabeça vazia, oficina do diabo. Ele apostava no ditado. E, muitas vezes, receitava o trabalho como cura para a ansiedade, anestesia para a solidão, antídoto contra os obsessores e até como forma de adiar a morte.
O trabalho engrossa o fio da vida repetiria, O trabalho em favor dos outros era um remédio quase milagroso.
Quem alivia é aliviado.
Ele estava sempre às voltas com metáforas ouvidas de Emmanuel. As frases de efeito estimulavam o rapaz a dispensar folgas e feriados. Uma delas comparava o médium a um campo de pouso, o espírito a um avião e ensinava:
- Se a pista não estiver cuidadosamente preparada, a máquina não consegue se ajustar ao pouso necessário.
De vez em quando, Chico ouvia o vozeirão de Emmanuel em seus ouvidos:
- Nada se pode fazer de nada.
Chico nunca usou relógio, para evitar o hábito de medir o tempo de trabalho, e sempre se sentiu culpado ao desperdiçar as horas.
Seu protetor fazia questão de repetir:
- Vamos trabalhar como se amanhã já não fosse possível fazer nada.
Emmanuel era implacável. Numa noite, ou melhor, já à 1h da madrugada, Chico voltava exausto de mais uma sessão no Centro Luiz Gonzaga quando abriu a porta de casa e deu de cara com uma cena nada agradável. Os dois gatos tinham sofrido uma indigestão. A sala parecia um chiqueiro. O mau cheiro estava insuportável. Chico sacudiu os ombros. Pediria a uma das irmãs que fizesse a limpeza na manhã seguinte.
Quando estava a caminho do quarto, escutou a voz do guia:
- Você, que vem de uma reunião espírita, está fugindo da sua obrigação? Está exigindo que uma pobre menina, cansada de trabalhar nas panelas e no tanque para que não lhe falte comida nem roupa lavada, limpe esta sujeira? Você vai pegar um pano, vai trazer água, sabão e vamos lavar.
Chico acatou. Só ele lavou. Emmanuel, de braços cruzados, se limitou a  "passar sabão " no coitado:
- No espiritismo, a pessoa tem que começar estudando nos grandes livros e também lavando as privadas, trabalhando, ajudando os que estão com fome, lavando as feridas de nossos irmãos. Se não tivermos coragem de ajudar na limpeza de um banheiro, de uma privada, nós estaremos estudando os grandes livros da nossa doutrina em vão.
Durante toda a sua vida, ele conservaria o hábito de varrer seu próprio quarto e limpar seu banheiro.
De vez em quando, Chico desanimava. Numa tarde, ele voltava da Fazenda Modelo, a pé e cabisbaixo, rumo a sua casa. Imaginava quando toda aquela trabalheira, cercada de desconfiança, iria terminar. Emmanuel apareceu com mais uma lição. Apontou um lavrador, que capinava, e usou uma metáfora:
- Reparou? A enxada, guiada pelo cultivador, apenas procura servir. Não pergunta se o terreno é seco ou pantanoso, se vai tocar o lodo ou ferir-se entre as pedras. Nós somos a enxada na mão de Jesus. E a enxada que foge ao trabalho cai na tragédia da ferrugem.
Emmanuel estalava o chicote. Rômulo Joviano fincava as esporas. A rotina de Chico era um massacre. Em dezembro, mês de escrever o balanço anual da Fazenda Modelo para enviar ao governo federal, Chico e seus colegas tinham que trabalhar até mesmo aos domingos. Ele ficava sempre com as prestações de contas mais difíceis. Era o melhor escrevente da repartição. Sabia gramática como ninguém e datilografava os textos em velocidade surpreendente, quase sem rasuras, direto no papel. Fazia apenas algumas anotações numa folha ao lado e seguia em frente. Dava aula aos colegas. Seus discípulos eram promovidos e o “mestre " continuava no mesmo lugar. Chico encarava a falta de promoção como uma lição de humildade, uma prova de sua insignificância.
Mas, num dos domingos de plantão, o jovem perdeu a paciência. A caminho do escritório, viu um grupo em torno de uma mesa de sinuca, cercado de garrafas de cerveja, feliz da vida. Como pode? Era muita falta do que fazer. Os marmanjos tentavam encaçapar bolas e ele trabalhava como um louco. A voz de Emmanuel chegou aos seus ouvidos, bem humorada:
- Meu filho, Deus colocou o bilhar no mundo para que certas pessoas não se ocupassem de tarefas piores.
Chico fechava os olhos para a diversão, algumas vezes à força. Numa tarde, ele teve sua conversa com amigos interrompida pelo vozeirão irritado de Emmanuel.
Já era mais do que hora de ele encerrar aquele bate papo, que atravessou a tarde inteira, e se trancar no quarto para escrever. Precisava colocar no papel páginas de um novo livro. Chico, animado, pediu mais alguns minutos. Emmanuel encerrou o assunto. Tinha de ser naquele momento, senão ele iria embora. Não podia perder tanto tempo com trivialidades.
Você fará tudo aproveitando os minutos.
Chico lia, escrevia, estudava, atendia aos doentes no Centro e, todos os sábados, ele e alguns amigos visitavam famílias que moravam embaixo de uma ponte em Pedro Leopoldo. Levavam roupa e comida, comentavam o Evangelho. Um dia, Chico ficou de mãos abanando. Sem donativos, só poderia levar água fluidificada. Os pobres esperavam o pão de toda semana. Chico já estava quase decidido a faltar ao compromisso, quando Emmanuel apareceu e recomendou que ele fosse de qualquer maneira. A ausência dele seria ainda mais frustrante. Enquanto pensava no assunto, indeciso, viu surgir, acima do portal de seu quarto, uma frase resplandecente: "Não vos deixarei órfãos..."
Tomou fôlego, caminhou até a ponte, com o grupo de companheiros, e, desconcertado, explicou aos pobres o problema: só tinham água. Os necessitados tentaram atenuar o constrangimento. Providenciaram uma toalha, estenderam o pano sobre uma laje de cimento e colocaram copos sobre ele. De repente, um senhor apareceu perguntando por Chico Xavier. Um casal de amigos ricos de Belo Horizonte havia mandado donativos. O caminhão estava parado na entrada.
- Onde devo descarregar? - perguntou o recém chegado. Foi uma festa. Sobrou comida até para os doentes da favela ao lado.
O trabalho de assistência social também dividia opiniões. Chico sofreria críticas durante toda a sua vida. Muita gente acusava o espírita de ser demagogo e de se aproveitar da miséria alheia para divulgar a doutrina. Além disso, as doações eram só um paliativo, apenas remediavam o problema. O governo, e não os espíritas, deveria cuidar dos pobres. Chico engolia em seco e investia na caridade. Só mais tarde, com o discurso mais afiado, ele enfrentaria os ataques com argumentos eficientes:
- Se uma casa está pegando fogo, devo enfrentar o incêndio com alguns baldes de água antes da chegada dos bombeiros ou devo cruzar os braços?
- O banho não resolve o problema da higiene no mundo, mas nem por isto vou deixar de me lavar...
Anos depois, ele reforçaria seu arsenal de argumentos com uma resposta emprestada de madre Teresa de Calcutá. Quando perguntaram a ela se não era melhor ensinar a pescar, em vez de dar o peixe, ela disse:
- Muita gente não tem nem força para segurar a vara.
Chico se sentia sob vigilância permanente. Emmanuel, Rômulo Joviano, os jornalistas acompanhavam seus passos a cada instante. Os espíritas estavam atentos a qualquer tropeço seu. Numa das visitas à cunhada, Geni Pena, no hospício em Belo Horizonte, ele foi visto de braços dados com uma mulher. O boato se espalhou. O autor do Parnaso de Além-Túmulo, porta-voz de Humberto de Campos na Terra, estaria perdendo tempo com um romance! Um médium chegou a divulgar longa carta ditada a ele por um espírito indignado com o namoro de Chico Xavier. O mineiro, então com 32 anos, tinha uma missão o espiritismo e deveria se dedicar a ela por inteiro. Uma comissão, formada por três amigos de Chico, foi a Pedro Leopoldo levar conselhos e voltou com uma explicação. A tal mulher, motivo de tanta polêmica, era sua irmã, Zina Xavier Pena. Ele se amparava nela para andar com mais segurança. Seu olho doía demais e ele enxergava cada vez menos.
Naquele tempo, Chico já tinha colocado uma frase atribuída a Emmanuel na cabeça:
- De que vale o perfume preso em um frasco?
Ou seja: de que valeria Chico Xavier preso a uma mulher? Ele deveria se dedicar a multidões. Devia estar à disposição de todos. Sua família era a humanidade.
Companheiros dele, bem casados, exigiam sua dedicação absoluta. Em 1940, nada menos que 500 mil pessoas se declararam "espíritas "  no censo demográfico. Muitas delas foram convertidas graças ao moço de Pedro Leopoldo. Sua responsabilidade era cada vez maior.
Chico sentia o peso. Queria atalhos ou, pelo menos, uma estrada menos acidentada, menos estreita. Emmanuel apareceu com nova lição:
- A estrada larga, pavimentada é mais suscetível a desastres, porque nela a velocidade é ameaçadora. A estrada estreita, entulhada, nos faz caminhar com mais cuidado.
Em 1944, Chico teria a impressão de estar capotando.

CONTINUA AMANHÃ

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