CONTINUAÇÃO
Esse Chico é formidável, mas, puxa, como come...
O aprendizado foi indigesto.
Chico engoliria muito sapo até aprender a dize "não ".
Chico trabalhava como um obcecado e queria mais. Além dos poemas e crônicas, sonhava escrever romances do outro mundo como a médium Zilda Gama. Ele se colocou à disposição de Emmanuel, mas foi desestimulado por ele. O trabalho exigia serenidade e Chico estava longe da tranqüilidade, sempre às voltas com os catorze irmãos. O pai desaparecia por algum tempo e a casa ficava por sua conta.
Só dois anos mais tarde, no final de 1938, após assumir com Emmanuel o compromisso de se acalmar, ele começou a preencher as páginas em branco com "lembranças " de 2 mil anos atrás. A primeira cena o pegou de surpresa: dois romanos envoltos em suas túnicas trocavam idéias no jardim, refestelados em longos sofás, quando um temporal desabou. As imagens e sons eram nítidos demais. Chico se sentiu como se estivesse no cinema, ao mesmo tempo como espectador e ator de um filme, dentro e fora da tela. Parou de escrever. E ouviu a explicação de Emmanuel, o autor do romance:
- Você está sob certa hipnose. Você está vendo o que eu estou pensando. Mas não sabe o que eu estou escrevendo.
Chico acompanhou a história como um telespectador diante de novelas. Chegou a torcer por certos personagens. Um deles era o próprio Emmanuel numa de suas vidas pregressas. Na encarnação nada evangélica. Na época de Cristo, ele teria sido não um apóstolo, mas um senador romano orgulhoso chamado Publius Lentulus.
Em 1939, o crítico literário mais rigoroso da época, Agripino Grieco, católico convicto, decidiu conhecer de perto o fenômeno de Pedro Leopoldo. O autor do livro Francisco de Assis e a Poesia Cristã fez o sinal da cruz e foi até um centro kardecista em Belo Horizonte, onde o moço exibiria seus dotes. Chico tinha acabado de lançar um livro com textos de Humberto de Campos (espírito), Crônicas de Além Túmulo - o quarto da série de trinta títu-los, e Agripino, ex colega do jornalista e escritor, queria checar a honestidade do mineiro que tinha a petulância de se apresentar como representante do morto.
O salão estava lotado. Os auxiliares de Chico, avisados da presença de crítico tão ilustre, providenciaram uma cadeira para ele ao lado do matuto. O recém chegado enterrou os olhos no rapaz e registrou, em silêncio, as primeiras impressões: "Um mestiço magro, meão de altura, com os cabelos bastante crespos e uma ligeira mancha esbranquiçada num dos olhos " Em seguida, rubricou, a pedido do orientador da sessão, vinte folhas de papel em branco, destinadas aos garranchos de Chico Xavier.
As rubricas afastariam a suspeita de substituição do texto.
Segundos depois, o rapaz fechou os olhos e o lápis disparou sobre a papelada em velocidade impressionante. Primeiro, apareceu um soneto assinado por Augusto dos Anjos. Depois, foi a vez de uma crônica assinada por Humberto de Campos.
O crítico ficou perplexo. Em entrevista ao jornal Diário da Tarde, em 31 de julho, confessou: "Tendo lido as paródias de Paul Reboux e Charles Muller, julgo ser difícil levar tão longe a técnica do pastiche. De qualquer modo, o assunto exige estudos mais detalhados, a que não me posso dar agora..."
Cinco dias depois, falou ao Diário Mercantil sobre a "profunda emoção " de reencontrar as idéias e estilos do amigo Humberto de Campos. Ainda estava confuso:
- "Pastiche? Mistificação? Imitação? Não nos reportemos somente a isso. O que não me deixou dúvidas, sob o ponto de vista literário, foi à constatação fácil da linguagem inconfundível de Humberto na página que li..."
No dia 21 de setembro, Agripino dava sinais de perplexidade crônica em entrevista ao Diário da Noite:
- Francisco Cândido Xavier compôs o texto com uma agilidade que não teria o mais desenvolto dos escreventes de cartório. Fiquei naturalmente aturdido. Depois disso, já muitos dias decorreram e não sei como elucidar o caso. Fenômeno nervoso? Intervenção extra humana? Faltam-me estudos especializados para concluir.
No fim do ano, cientistas russos se candidataram a estudar o fenômeno mineiro.
Fizeram uma proposta a Chico: ele se submeteria a seis meses de testes em Moscou e receberia em troca trezentos contos de réis, O jovem ficou tentado. O dinheiro era suficiente para construir cinqüenta casas populares. Uma fortuna para quem ainda estava às voltas com a primeira das oito prestações de um novo chapéu.
Emmanuel entrou em cena e quebrou as ilusões do candidato a cobaia:
- Se quiser, pode ir. Eu fico.
Chico precisava ter cuidado. A tal "harpa melodiosa " citada por sua mãe poderia enferrujar se ele cedesse à ambição ou ao orgulho. Para evitar o perigo, começou a castigar o próprio ego com golpes diários e contundentes. A autoflagelação partia de um pressuposto simples: ele não era nada, os benfeitores espirituais eram tudo e um pouco mais.
O segredo do sucesso: abrir mão de si mesmo. "Aquele que quiser ser o maior que se faça o servidor de todo "", lia no Evangelho. E acatava.
Em sua campanha antivaidade, Chico criou, ao longo da vida, alguns slogans para se defender dos elogios. "Sou apenas Cisco Xavier " era um deles. Ele fazia questão de proclamar a própria "absoluta insignificância ". Afinal de contas, era um "servidor quase inútil da doutrina espírit , "o mais pequenino de todos ", O aprendiz de curandeiro "um na ", "mais imperfeito que os outros ". A lista de metáforas auto depreciativas cresceria a cada ano. Chico se apresentaria como um graveto que se confunde com o pó, um animal em serviço, uma besta encarregada de transportar documentos dos espíritos, uma tomada entre dois mundos. Nenhuma das frases de efeito afastava os devotos e os bajuladores.
Um dia, diante de uma mulher quase de joelhos a seus pés, ele apelou:
- Não me elogie assim. É desconcertante. Não passo de um verme no mundo.
No mesmo instante, ouviu a voz de Emmanuel:
- Não insulte o verme. Ele funciona, ativo, na transmutação dos detritos da terra, com extrema fidelidade ao papel de humilde e valioso servidor da natureza. Ainda nos falta muito para sermos fiéis a Deus em nossa missão.
Daí em diante, Chico preferiu se definir, de vez em quando, como subverme.
Para os admiradores, tanta humildade era mais uma prova de santidade. Para os adversários, era pura demagogia, vaidade.
Chico lutava para ser "o servidor de todo "", ou seja, "o maior ".
Um dia, o rapaz se empolgou e apostou nos elogios feitos a ele. Uma carta enviada de um centro espírita de Belo Horizonte definia sua presença numa sessão como "indispensável ".
Chico pediu a Rômulo Joviano dois dias de licença na Fazenda Modelo e embarcou no trem rumo à capital mineira. No vagão, foi surpreendido pela aparição de Emmanuel:
Então, você se julga indispensável e, por isso, rompeu todos os obstáculos para viajar como quem realiza uma tarefa fundamental? Já refletiu que o serviço do ganha pão é indispensável a você?
Chico desceu do trem e tomou outro de volta. Até se aposentar, não faltaria a um dia de trabalho.
Os problemas se sucediam em Pedro Leopoldo. O número de pessoas à procura de Chico Xavier aumentava e muitas delas já iam até a Fazenda Modelo pedir socorro. Rômulo Joviano começou a se irritar. Era preciso encerrar aquela romaria no horário do expediente. Numa tarde, uma mulher desesperada chegou ao escritório e foi barrada pelo patrão de Chico no meio do caminho. Para despachar a visita, ele garantiu que seu empregado estava em casa. A mulher foi até lá e recebeu a informação verdadeira: Chico estava no emprego. Irritada, ela voltou a Fazenda e ouviu outra mentira: o datilógrafo tinha saído a serviço. Após resmungar um palavrão, desapareceu batendo os saltos no chão.
À noite, foi a primeira a entrar no Centro Luiz Gonzaga.
Nem pensou duas vezes. Avançou contra Chico Xavier e encheu seu rosto de bofetões. Com a voz e as mãos trêmulas, berrou:
- Está pensando que tenho tempo para andar atrás de você para cima e para baixo? Vá já para aquela sala. Você vai me dar um passe agora, cachorro.
Chico ficou paralisado. Não conseguiria ajudar ninguém.
Precisava estar calmo para transmitir energia positiva. Emmanuel apareceu com mais um conselho:
- Converse com ela, mostre compreensão.
Ainda com o rosto ardendo, ele tomou fôlego e começou a se desculpar:
- A senhora me perdoe por ser uma pessoa tão ocupada. Não pude atendê-la em meu emprego porque meu chefe não permite. A senhora compreende. Estou ali para servir à empresa que me paga. Não posso ser demitido porque tenho irmãos para ajudar.
A mulher começou a chorar, Chico voltou ao normal e obedeceu a ordem. Quando ela virou as costas, ele perguntou ao seu companheiro invisível se não teve razão de ficar irritado.
Você está com a razão, mas ela está com a necessidade.
Para se acalmar, se lembrou de um dos mandamentos ouvidos de Emmanuel:
- Sua missão é formar livros e leitores. Formar leitores é suportar suas exigências, sem censuras. Formar livros é se esquecer de você.
No dia seguinte, quando chegou à Fazenda Modelo, Chico foi recebido pelos olhares inquisidores de Rômulo Joviano. Que inchaço era aquele no rosto do funcionário? Chico disfarçou:
- Bati na porta.
E preferiu o silêncio quando o patrão retrucou:
- Dos dois lados?
Para evitar cenas como essa, José Xavier decidiu ajudar o irmão. Os visitantes poderiam ser encaminhados à sapataria onde ele trabalhava. Conversaria com todos até a hora em que Chico saísse do serviço para atendê-los. Alguns doentes chegavam amarrados, arrastados pela família, para serem submetidos às sessões de desobsessão promovidas por Chico. José atendia aos desesperados com educação e paciência.
CONTINUA AMANHÃ
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