segunda-feira, 16 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - O APRENDIZ DE CURANDEIRO - 1ª PARTE

O APRENDIZ DE CURANDEIRO

A maioria dos visitantes saía do Rio de Janeiro e de São Paulo atraída pelo porta-voz dos poetas mortos e voltava para casa impressionada com as consultas médicas do Dr. Bezerra. Bastava escrever o nome e o endereço numa ficha para receber, no fim da noite, receitas sempre homeopáticas assinadas pelo espírito do médico.
Ninguém precisava revelar a doença para ter acesso ao diagnóstico escrito por Chico Xavier.
Muitos, impressionados com os poderes do protegido de Emmanuel, chegavam a oferecer dinheiro ao rapaz pobre como prova de gratidão. Ele recusava:
- Ajude o primeiro necessitado que encontrar.
Outros lhe entregavam presentes. Chico se livrava deles com pressa e discrição.
Numa noite, ganhou um relógio de ouro suíço. Na tarde seguinte, visitou uma doente, Glória Macedo. Pobre, ela costumava perder a hora de tomar os remédios receitados pelo Dr. Bezerra por falta de relógio. Chico deixou o presente da véspera sobre a mesa da  "paciente ".
Mas nem todos saíam satisfeitos do Centro Luiz Gonzaga. Alguns ficavam decepcionados com recados médicos vagos como  "buscaremos cooperar espiritualmente em seu favor " ou "confiemos na bênção de Jesus ". Chico esclarecia, com educação: não fazia milagres. Sua prioridade era o livro e não a cura.
Às vezes Chico decepcionava como  "doutor " e repetia sempre:
- Todo médium é falível.
Vulnerável a enganos, ele tratava de tomar precauções: nunca receitava antibióticos e, diante de casos mais graves, aconselhava tratamento médico. Ninguém poderia acusá-lo do exercício ilegal da medicina.
Algumas das próprias falas clínico espirituais ele justificava como decisões estratégicas dos  "benfeitores espirituais ". Os equívocos serviriam para combater sua vaidade e mostrar seus limites.
Bem ou mal, Chico Xavier atiçava a curiosidade e colocava Pedro Leopoldo no mapa. João Cândido Xavier começou a gostar daquela confusão. Com ares de empresário, sugeriu ao filho:
- Se você construir aí na porta um galinheiro e cada visitante deixar uma galinha, ficaremos ricos...
Chico sacudiu a cabeça e riu. O pai se irritou.
- Ora, Chico, os espíritos que te orientam são tão atrasados, mas tão atrasados que, em vez de escreverem Manuel, escrevem Emmanuel.
O rapaz repetiu a velha história: nunca poderia ganhar dinheiro com sua mediunidade. E ouviu o desabafo paterno:
- Eles mandam você não cobrar nada de ninguém porque não pagam o leite e não têm que comer carne. Pode ficar certo, meu filho, quando eu morrer, vou ser seu guia.
João Cândido só faltava bocejar quando o filho abria O Evangelho Segundo o Espiritismo e lia a recomendação de Jesus:
- "Dai de graça o que de graça recebestes " . A bênção da mediunidade parecia maldição. O pai ficava impressionado: Chico trabalhava tanto para os outros a troco de quê? A recompensa não vinha.
Nessa época, o rapaz enfrentava dificuldades sérias no armazém de José Felizardo. O patrão tinha sofrido uma trombose cerebral e o salário estava a cada dia mais minguado. Chico teve que recorrer a um bico na Inspetoria Regional do Serviço de Fomento da Produção Animal, na Fazenda Modelo. Nas horas vagas, trabalhava de graça para o doente e fazia companhia a ele.
Em 1935, Felizardo não teve dinheiro para pagar os impostos do segundo semestre, o armazém faliu e o ex caixeiro entrou para o quadro de funcionários da Inspetoria como escrevente datilógrafo. Em vez de servir cachaça, ele escreveria relatórios sobre os bois, cavalos e jumentos puro sangue criados na fazenda do governo e emprestados, para reprodução, a fazendeiros cadastrados no Ministério da Agricultura. Em pouco tempo, seria um especialista em gado zebu.
No escritório, ele encontrou outro "guia" , este de carne e osso, disposto a domar com boas chibatadas seus instintos de "besta espírita " . O administrador da fazenda, o engenheiro agrônomo Rômulo Joviano, mantinha o rapaz no cabresto. Espírita de carteirinha, ele não só acompanhava de perto os relatórios do empregado como também supervisionava seus "textos do além " e acompanhava as sessões do Centro Luiz Gonzaga, do qual se tornaria presidente. Só era distraído mesmo para promoções, aumentos e folgas.
Chico já estava às voltas com memorandos bovinos quando chegou às livrarias a segunda edição do Parnaso de Além-Túmulo, em 1935. O volume, quase três vezes maior do que o da primeira edição, era festejado no prefácio pelo vice-presidente da Federação Espírita Brasileira, Manuel Quintão. Responsável pela primeira versão do livro, o filólogo espírita festejava as novas aquisições (Olavo Bilac, por exemplo) e transformava em estandarte o texto escrito por Humberto de Campos (espírito).
No artigo, intitulado  "De Pé, os Mortos " , o escritor reafirmava a autenticidade dos poemas ditados pelos espíritos ao matuto de Pedro Leopoldo.
Quintão estava entusiasmado: O crítico João Ribeiro disse que o médium não traiu nenhum dos poetas. Ora, esta concisa sentença de J. Ribeiro vale por todos os estultilóquios e paparrotadas que andas, que a crítica de papo amarelo improvisou a propósito de quanto se afaste do seu clássico palmo de nariz.
O texto era um panfleto.
A nova edição saiu com um único, e discreto, reparo.
O perfil de Guerra Junqueiro, escrito pelo indignado Quintão em 1932, em introdução aos versos atribuídos ao poeta, mudou de tom, O "bardo " português, definido como "notável por sua hostilidade à Igreja de Roma na versão original, passou a ser admirável por sua  "veia combativa e satírica " . Era início da censura na literatura espírita. Era também uma alteração adequada a quem, como Chico, passaria a vida repetindo:
- Não vim para brigar com ninguém. Não vim para dividir.
Mas dividia. O romancista mineiro João Domas Filho, por exemplo, se irritaria com os poemas assinados por Olavo Bilac na nova edição do Parnaso:  "Ele, que nunca escreveu um verso imperfeito, nem em sua pior fase, depois de morto ditou ao médium sonetos inteiros abaixo do medíocre " .
O ferino Osório Borba, autor de A Comédia Literária, decidiu assistir a uma sessão no Centro Luiz Gonzaga. Sem se identificar, viu Chico espalhar versos pelas páginas em branco em velocidade surpreendente, mas não se convenceu. Após o "espetáculo ", ele conversou com o autor do Parnaso e foi honesto: duvidava da possibilidade de os espíritos se manifestarem com sua ajuda, mas acreditava na sua honestidade.
Chico seria apenas uma vítima inconsciente de fenômenos ainda pouco estudados.
Os poemas e poetas recém chegados à nova edição do Parnaso geraram boatos mirabolantes. Os católicos mais empedernidos chegaram a acusar a Federação Espírita Brasileira de manter uma comissão de escritores encarregada de inventar todos aqueles versos em sigilo absoluto. A causa era nobre: convencer os incrédulos da existência de espíritos. Chico Xavier desempenharia o papel do ignorante sem tempo nem cultura para escrever os poemas, mas capaz de ser porta voz dos mortos, em troca de dinheiro e em nome da divulgação do espiritismo.
Os rumores eram tão fortes que Chico tratou de arquivar, com cuidado, os originais de todos os textos vindos do  "outro mund  ". Quando lhe sugeriram transferir a papelada de Pedro Leopoldo para a sede da Federação Espírita, no Rio, ele recusou. Precisava ter seus garranchos sempre à mão para mostrar aos céticos.
Fez bem.
Mais tarde, ele mostraria suas "provas " a dois padres e três protestantes interessados em desmistificar a  "fraude mineira  ".
Em meio à polêmica, o rapaz de Pedro Leopoldo ficava famoso e virava atração princi-pal em sessões espíritas de outras cidades. Em 1936, enquanto Boris Karloff provocava calafrios no filme O Morto Ambulante, ele roubava a cena na Sociedade Metapsíquica de São Paulo. Na noite de 29 de março, colocou no papel uma mensagem assinada por Emmanuel, em inglês, e escrita de trás para a frente, em papel timbrado da entidade, previamente rubricado com duas assinaturas. A platéia só faltou aplaudir de pé e pedir bis. Após a exibição, foi convidado para um jantar na casa de uma socialite espírita.
A dona da casa tinha ímpetos de colocar o "embaixador " dos mortos numa de suas baixelas de prata. Diante dos talheres reluzentes e dos figurinos de gala, o rapaz enrubescia, engasgava. Nunca tinha visto tanta comida junta. Nem sabia por onde começar. Estava paralisado.
De repente, saltou em direção à porta da cozinha e arrancou das mãos de uma jovem uma travessa repleta de arroz. A anfitriã chegou a tempo de evitar o pior. O rapaz estava contrariado.
A coitadinha é tão frágil. E nós aqui, à toa, vendo-a fazer tudo sozinha.
Foi difícil convencer o matuto de que a coitada era empregada da casa e recebia um salário por aquele serviço. Só após certa disputa pela posse da bandeja, Chico se conformou e foi à mesa se servir.
A dona da casa fez questão de acompanhar o tour do pobrezinho em torno do bufê.
Isto é gostoso, meu filho. Coma, coma, coma um pouco mais.
Com medo de fazer desfeita, o coitado engolia a miscelânea de carnes, massas e saladas. Sempre que levava à boca os últimos vestígios de comida, escutava a voz estridente ao seu lado:
- Coma um pouco mais. O que é isso? Tão pouco...
O prato se esvaziava e logo se enchia de novo. Chico sorria, agradecia, afrouxava o cinto, desabotoava o colarinho, respirava fundo. Quando chegou a sobremesa, sentiu vontade de chorar. A anfitriã cobriu seu prato de doces. Ele comeu. Ao sair, amparado por amigos, escutou o comentário sussurrado pela dona da casa a uma amiga:

CONTINUA AMANHÃ

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