CHUVA DE PÉTALAS
Em 1954, um fenômeno tirou o fôlego até mesmo dos amigos já habituados com os poderes de Chico. Sua irmã, Neusa, estava de cama, magra, pálida, triste.
Arnaldo Rocha, Lucília, seu marido Pacheco e Chico fizeram um círculo em torno da cama onde ela estava, em casa, e iniciaram os passes. Com a luz apagada, Chico rezou.
Arnaldo sentiu algo úmido, leve, cair em sua cabeça, nos seus braços. Os outros tiveram a mesma sensação. O protegido de Emmanuel pediu que todos mantivessem as mãos à altura do peito. Quando a luz se acendeu, eles desvendaram o mistério: o chão, a cama, o quarto, estavam repletos de pétalas de rosas. Na manhã seguinte, Neusa morreu.
Os casos sobre o mito Chico Xavier se sucediam. Em 1955, o filho de um motorista de táxi de Pedro Leopoldo, Geraldo Leão, estava de cama, vítima de uma paralisia facial provocada por choque térmico. Era tratado com chá de canela e compressas de água fria, em meio a uma febre crônica. Seus lábios pareciam prestes a alcançar as orelhas. Chico foi até o quarto e ouviu as queixas do rapaz. Ele tinha a sensação de que uma faca lhe rasgava o rosto. O espírita tirou o chapéu, colocou a mão na testa do doente e disse três vezes:
- Você vai ficar bom, você vai ficar bom...
A boca foi voltando ao normal, a dor desapareceu e Chico também, logo após pedir segredo.
Eram escassas, e discretas, as curas promovidas por ele. E eram ainda mais raras as previsões feitas por Chico Xavier. Ele evitava profecias, temia ser enganado por espíritos mal intencionados. Uma vez quebrou o protocolo e garantiu ao amigo Ranieri: se ele segurasse uma lâmpada com força, ela acenderia. A energia do delegado seria suficiente para gerar luz. Ranieri quase ficou com os dedos roxos. Tudo em vão. Não tinha vocação para bocal.
Muita gente duvidava dos superpoderes de Chico Xavier. O coro dos desconfiados seria engrossado até pelo oftalmologista do vidente, o Dr. Nadir Sáfadi, de São Paulo.
Numa das consultas, enquanto examinava a catarata e a miopia do paciente, ele não resistiu e perguntou:
- Você vê mesmo os espíritos?
Chico deu a resposta de sempre e recebeu de volta outra dúvida:
- Mas como você enxerga os espíritos com olhos tão debilitados?
O doente recorreu a um discurso kardecista:
- A mediunidade vidente independe dos olhos do corpo físico. O assunto exige muito estudo.
- Você está vendo algum espírito aqui no consultório?
Chico Xavier respondeu com um "sim " desconcertante e lacônico. O silêncio foi quebrado pela ansiedade do médico:
- Quem está aqui? Como ele se chama?
O paciente engoliu em seco. Sentiu medo de dizer nome tão inusitado e ridículo.
Podia estar sendo vítima de alguma chacota espiritual.
Diante da insistência do médico, ele tomou coragem e revelou:
- Ele está me dizendo chamar-se Senobelino Serra. Diz ter sido natural de São José do Rio Preto.
O Dr. Sáfadi ficou pasmo.
- Dr. Senobelino foi meu professor, foi muito amigo meu.
Chico Xavier respirou aliviado e foi adiante:
- O Dr. Senobelino está me dizendo ter sido designado pela Espiritualidade Maior para ajudar o senhor na profissão de médico oftalmologista, juntamente com outros amigos, porque o senhor ajuda muita gente aqui no consultório.
Histórias mirabolantes como esta se espalhavam, e o protegido de Emmanuel recebia a visita de céticos dispostos a desmascará-lo de uma vez por todas. A cada semana, cerca de duzentos novos curiosos chegavam à cidade. Chico calculava em um terço desse número a quantidade de desconfiados.
Em 1955, desembarcou em Pedro Leopoldo frei Boaventura Chasseriaux. Durante três dias, em abril, ele seguiu os passos do ex católico, conversou com ele e tentou convencê-lo a se submeter a uma hipnose e a dizer a verdade em confissão. A conversa ficaria em segredo. Chico agradeceu. Não precisava desabafar. O padre registrou suas impressões em O Diário, autoproclamado "o maior jornal católico da América Latina "
Para começar, decretou: "O espiritismo não passa de um erro que irá acabando com a pregação da verdadeira doutrina do Cristo ".
Em seguida, criticou: "Só mesmo com muita indulgência podemos achar os livros e discursos de Chico Xavier de grande valor e seria desaforo atribuí-los aos espíritos de luz ".
Mais adiante, absolveu Chico de seus pecados: "Ele é solteiro, de vida simples e pura. Não podemos acusá-lo de ter se aproveitado pessoalmente do movimento em torno dele ".
Para arrematar, levantou suspeitas contra seus parentes:
"Sua família (irmãos, cunhado) tem lucrado bastante. De pobres que eram passaram para uma situação bastante invejável ".
Frei Boaventura registrou boatos que já ventilavam em Pedro Leopoldo. Alguns parentes de Chico estariam mesmo tirando vantagens da movimentação em torno dele. Os vizinhos cochichavam pelas esquinas. Lucília sentia os olhares desconfiados dentro de sua casa. Algumas visitas chegavam, sentavam-se e, se houvesse algum eletrodoméstico novo na casa, disparavam a pergunta incômoda:
- Quem te deu?
Os rumores envolviam com freqüência o nome de André Xavier. As acusações eram graves. O irmão caçula de Chico, um dos receitistas assistentes do centro, teria feito um acordo com um fabricante do depurativo Fumarento. Em troca de comissão, incluiria nas receitas do Dr. Bezerra o nome do remédio, por sinal bastante assíduo nas sessões. André também usaria o nome de Chico Xavier para contrair empréstimos. Um colega de trabalho, Guilherme Augusto Filho, guarda lembranças amargas da convivência com André. Ele emprestou dinheiro ao irmão do amigo, que prometeu o pagamento de juros mensais de 5% até o saldo da dívida. Nos dois primeiros meses, o trato foi cumprido. Nunca mais.
Tempos depois, após fugir o quanto pôde dos credores, André arrumou as malas e foi para São Paulo. Só reapareceu em Pedro Leopoldo como assunto da revista Fatos e Fotos, em 1980. Tinha montado um consultório espiritual na capital paulista e prometia cura por correspondência. "Os pedidos por escrito são enviados a mim .
Cerca de quinze a vinte dias após a formulação do pedido, a consulta é concluída com uma resposta contendo a orientação espiritual. Os casos que merecem um cuidado especial são encaminhados pessoalmente a Chico ".
Diante dos boatos e das críticas, Chico recorria a uma idéia fixa: "Deixa a água do silêncio trabalhar nesses incêndios ", Em carta a amigos, ele aconselhava: "Nunca revidemos ".
Emmanuel fiscalizava não só as palavras ditas por Chico como também, e principal-mente, as escritas. Vetava, sem piedade, "idéias imprópria ". Até Humberto de Campos sofreu censura espiritual. Tudo porque assinou, através de Chico, artigo sobre um dilema já em alta naquela época: o homem deve ou não comer carne?
Para responder à questão, Humberto contou a história de um anjo encarregado por Deus de fazer um relatório sobre a Terra. Chegou aqui e encontrou um animal arando o campo, açoitado por uma espécie de demônio.
Depois, viu outro animal no curral, com outro demônio espremendo suas tetas e tirando leite, em prejuízo do filho dele, que berrava à distância. Mais tarde, viu um enorme animal sendo morto, suas carnes sendo comidas pelos pequenos demônios e seu couro sendo usado em calçados. Era o bastante. Ele anotou no seu bloco:
- O homem é um ser muito elevado, bom e paciente, merecedor do amor de Deus.
E decidiu conversar com o demônio:
- Por que fazes isto com o homem? Por que o maltratas e o matas se ele te dá tudo?
O demônio desfez o mal entendido:
- Eu sou o homem. Ele é o boi.
O anjo ficou perplexo e enviou o mais rápido possível seu relatório a Deus.
Emmanuel apareceu, leu a parábola e mandou Chico rasgar o texto em pedacinhos. Os espíritas poderiam ser influenciados por aquela história. Muitos deles, inclusive Rômulo Joviano e Chico Xavier, funcionários da Fazenda Modelo, trabalhavam com a carne e ganhavam a vida assim. O artigo poderia provocar problemas sociais mais graves do que os gerados pela alimentação carnívora.
Chico acatou. E seguiu também ordens atribuídas a Emmanuel ao preparar a sexta edição do Parnaso de Além-Túmulo, em setembro de 1955, ano da morte de Manoel Quintão.
A nova versão da coletânea de poemas chegou às livrarias com um adendo na capa: "Revista e ampliada pelos autores espirituais ". Emmanuel fez o papel de censor. E foi implacável. Ele queria versos espiritualmente corretos, fiéis à cartilha evangélica, de acordo com os ensinamentos de Jesus e de Kardec. A poesia perdeu espaço para a doutrina.
O poema "A Guerra", de Augusto dos Anjos, por exemplo, desapareceu. Quem abre hoje o Parnaso já não encontrará estes versos, formulados em meio às bombas da Segunda Guerra Mundial: "
A torva geração do ódio e da Guerra
embora a paz suavíssima a conclame
Faz dos homens do mundo amargo e infame
Assanhados carnívoros da Terra.
O texto era pessimista demais.
Guerra Junqueiro também sofreu cortes. Seu poema "Contra a Besta Apocalíptica ", sumiu. Pecou por excesso de anticlericalismo, considerado uma virtude nos tempos do indignado Manoel Quintão, responsável pela primeira edição da coletânea. Os versos não passaram pelo crivo "emmanuelino ":
Não contente com o dogma inquisitorial
que o seu concílio impôs a todas as criaturas
A Igreja ainda requer benesses, sinecuras
Amealhando assim o ouro universal.
Para arrematar, Junqueiro chamava o padre de "mercador do altar ". Era demais.
CONTINUA AMANHÃ
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