sexta-feira, 27 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - HUMBERTO DE CAMPOS - O ESCÂNDALO - PARTE 7

CONTINUAÇÃO

Chico obedeceu mais uma vez. Sua missão era o livro, era materializar idéias. Precisava cumprir seu cronograma e entregar logo os novos trinta títulos. Ainda faltavam dez.
A maioria dos amigos entendeu. O autor de best sellers espíritas saía das sessões em estado de exaustão. Pálido, abatido, banhado em suor. Alguns admiradores ficaram decepcionados. Quem sabe Chico não poderia provar, com esses fenômenos, a existência dos espíritos? A esperança era inútil. A maioria absoluta dos céticos duvidaria de cada foto ou de cada aparição luminosa.
Em 1954, Chico Xavier estava esgotado. Arnaldo Rocha e o amigo Ennio Santos o convenceram a passar alguns dias em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Aquela seria uma viagem também no sentido psicodélico da palavra.
As surpresas começaram ainda no meio do caminho, quando Chico sugeriu um pernoite em Resende. O hotel escolhido pelo moço de Pedro Leopoldo era incomum. Logo no salão de entrada, encravado no mármore da lareira, reluzia o símbolo do comunismo a foice e o martelo. Deus, ali, não deveria ter o menor ibope. Mas tinha.
As portas de todos os apartamentos eram marcadas por citações evangélicas pintadas a óleo. Na entrada do quarto deles, equipado com três camas estreitas, a frase de boas vindas tinha a assinatura de Lucas: "E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, perante Deus e os homens. Do lado de dentro, a madeira era marcada por outra saudação, esta menos empolgante. O apóstolo Marcos desejava  "boa-noite "
"Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai " Chico Xavier se deitou e aconselhou:
- Tomem cuidado com as palavras.
Conseguiram dormir. Ennio e Arnaldo estavam embalados no sono quando foram surpreendidos por Chico, novo em folha, de pé, pronto para uma boa caminhada.
Arnaldo conferiu no relógio: 5h30 da manhã, O frio intenso recomendava um cobertor felpudo. Os dois tomaram coragem, café, fôlego e, em pouco tempo, estavam diante de uma cachoeira ao lado de Chico. Para começar, ouviram dele um aviso em tom coloquial:
- Há vários espíritos aqui, homens, mulheres e crianças, num ritual.
Arnaldo quis saber se eles também eram vistos pelo grupo.
Chico respondeu com uma explicação dada por seu companheiro invisível.
Emmanuel esclarece que são espíritos simples, ingênuos. Pelo nosso calendário, poderíamos dizer que se encontram ainda no século XV, no mundo que lhes é próprio.
Nós não existimos. Eles não nos vêem e encontram-se em fase evolutiva bem acanhada. São índios.
Após breve pausa, completou:
- Estão, sim, meu amigo, completamente nus, pelados.
Lançou um olhar irônico a Arnaldo:
- Não é esta a sua pergunta mental?
A viagem estava só começando.
O trio chegou em Angra à noite e, na manhã seguinte, visitou as ruínas do Convento São Francisco. Eles caminhavam, quando Chico avisou a Ennio:
- Creio que terá algumas surpresas hoje.
Minutos depois, já no Cemitério do convento, Ennio encontrou em velhas lápides gastas pelo tempo os nomes de seus avós paternos e maternos. Após o tour religioso, os três decidiram encarar um programa mais ousado: alugaram uma lancha e tomaram o rumo de uma ilha deserta, velha conhecida de Arnaldo. O sol estava tinindo.
Desembarcaram, despediram-se do condutor e ouviram dele a promessa de voltar três horas mais tarde. Arnaldo resolveu nadar, Chico e Ennio ficaram à beira mar, com as calças suspensas até os joelhos, rindo e conversando entre as marolas. De repente, por volta das 16h, o tempo virou. Ondas gigantescas saltaram do mar, um temporal desabou. Do barco prometido, só se ouvia o barulho abafado ao longe. Ele tentava se aproximar, desistia, insistia, voltava. Com muito custo, o barqueiro chegou até a praia. Estava apavorado. A embarcação inclinava-se para todos os lados. As rezas pareciam inúteis. O motor parou de repente.
Chico ficou mudo, encharcado. Arnaldo segurou sua mão e ele, baixinho, lhe disse:
- Limite-se a orar. Depois eu lhe conto.
A viagem, que demorou quarenta minutos na ida, prolongou-se por mais de quatro horas na volta. De vez em quando, Chico se encolhia num canto, franzia a testa e mordia o lábio inferior. Tinha bons motivos para tanta agitação: duas assombrações agarravam desesperadas as bordas do barco. Pareciam pedir socorro. Só ele via.
E só ele ouviu a explicação nada tranqüilizadora de Emmanuel:
- São suicidas extremamente voltados para o mal. Estão tentando virar a embarcação. Já tomamos as providências devidas.
A dupla mal intencionada estava cercada de outros suicidas, uma horda de seres monstruosos.
Entre mortos e vivos, salvaram-se todos. Mas Chico ficou impressionado. Em seus 43 anos de convivência com o insólito, nunca tinha visto gente tão desesperada.
A noite também seria tempestuosa.
Os três jantaram e foram para o quarto. Conversaram sobre os sustos e as surpresas do dia, riram, conseguiram relaxar.
Estavam prontos para um sono mais ou menos tranqüilo, quando Chico aconselhou uma reza. Emmanuel iria se manifestar. Dito e feito. A voz de Chico mudou:
- Meus diletos e caríssimos amigos, que o Senhor se compadeça de nossas necessidades. Devemos estar preparados para tarefas de assistência e enfermagem espiritual.
Em seguida, Emmanuel se calou e abriu passagem para um desfile de assombrações. Todas usaram e abusaram do corpo de Chico.
O primeiro visitante tomou conta do ex matuto de Pedro Leopoldo e o deixou transtornado. De pé, andando de um lado para o outro, ele dava ordens, esbaforido:
- Atirem! Carreguem os canhões. Coragem! Ah, Napoleão! Eu que tanto o admirava... Não passas de um conquistador cruel...
Arnaldo e Ennio rezaram e puxaram conversa com o recém chegado, bastante à vontade na pele de Chico Xavier. Aos prantos, ele se apresentou como capitão de um navio posto a pique em combate, em Angra, por corsários franceses, em 1810. Ele chorava por seus comandados, pela mulher, pelos filhos.
- Que a Virgem Santa os tenha em sua guarda. Como é possível, caros senhores? Amava tanto o bravo general Napoleão. Como pode se transformar nessa ave de rapina? Ele, que lutou pelos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade...
Após desabafar e ouvir uma série de conselhos, o comandante saiu de cena. Era um privilegiado se comparado com as outras visita da noite. A voz de Chico transformava-se em grunhidos, uivos, silvos, engrossava e afinava. Ele rastejava, saltava, se contorcia, tinha o rosto atravessado por rugas profundas e repentinas. Sozinho, dava vida a personagens inacreditáveis. Pela sua boca, um juiz negociava sentenças injustas em troca de nobreza e prestígio político. Franciscanos lembravam-se dos bons tempos em que promoviam orgias e matavam seus hóspedes no convento para roubá-los. Um desfile de criaturas sórdidas tomou conta do quarto. Quem colasse o ouvido na porta do lado de fora ficaria atônito, teria vontade de chamar o exército ou o hospício. Uma multidão aglomerava-se ali dentro.
As histórias pavorosas sucediam-se: recém-nascidos eram seqüestrados nas senzalas, seviciados e sacrificados em rituais satânicos. Escravas eram violentadas por seus senhores. Chico encarnava todas as criaturas num monólogo ensandecido.
Ennio e Arnaldo usavam todos os argumentos para acalmar os visitantes. Um dos mais desesperados apareceu como escravo, morto a chicotadas no tronco de castigos.
Seu crime: ter suplicado ao prior dos franciscanos que não tomasse sua filha Aninha para suas orgias. Chico se ajoelhava no chão e com os olhos marejados implorava:
- Oh, meu sinhô. Vosmicê é tão bom. Num faze essa coisa cum minha cuburquinha Aninha, não. Sinhô, vosmicê é um santo. Aninha é luz dos meus óio tão cansado de pinta as figurinha nos livro de vosmicê...
Ennio e Arnaldo choravam, rezavam, conversavam. Mas só conseguiram acalmar o coitado com a ajuda da falecida mulher de Arnaldo, Meimei, considerada pelos espíritas um espírito de luz. Ela apareceu e foi apresentada como nova proprietária do escravo. Chico, ainda ajoelhado, foi beijado pela aparição e reagiu com subserviência.
- Uai, sinhá. Vosmicê tá beijando negro sujo? Aninha mora cum vosmicê? Num faze isso, não. Negro Pedro é que beija sua mão e as dos outros moço.
Chico distribuía beijos e continuava:
- Vosmicê são gente de Deus. O véio Pedro inda sabe faze sabão de bola cum alecrim pra ficá cheroso... Vô fazê, viu? É um chero tão bão...
Durante três noites, o quarto se transformou em palco de tragédias de outro mundo. Ali, em Angra dos Reis, Chico deu uma amostra do que costumava fazer nas sessões de desobsessão semanais e privativas no Centro Luiz Gonzaga.
Aquelas foram as suas férias.
Nas  "horas úteis " o médium exibia poderes cada vez mais ecléticos e inacreditáveis. Ondas de perfume se desprendiam de seu corpo de repente. A água - colocada em copos e garrafas sobre a mesa em sessões kardecistas para concentrar energias positivas enviadas pelos espíritos muitas vezes ficava leitosa e perfumada quando Chico se aproximava.
Os mais desconfiados tentavam descobrir onde ele escondia as fragrâncias.
Ninguém encontrava o frasco. Muitos saíam do centro com lenços encharcados por aquele liquido vindo do nada.
O perfume, segundo os espíritas, não era mero exibicionismo. Chico, ou melhor, Emmanuel, sempre destacou os poderes terapêuticos das rosas, ricas em vitaminas C e D. O aroma viria de flores "astrau  'usadas pelos benfeitores espirituais para energizar os visitantes mais abatidos. Chico levava tão a sério o poder das rosas que sempre plantou roseiras em seu quintal com a segunda intenção de criar um cinturão  "balsâmico" em torno de si. De vez em quando, especialmente em sessões de desobsessão, ele exalava também um cheiro de éter quase sufocante. Era o sinal de que Sheilla, a enfermeira, estaria por perto.
Os amigos divulgavam os poderes extravagantes de Chico.
Um deles era o de adivinhar a história de objetos apenas com o toque.

CONTINUA AMANHÃ

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