segunda-feira, 23 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER- HUMBERTO DE CAMPOS - O ESCÂNDALO - PARTE 3

CONTINUAÇÃO

Ele vibrava com música. Em meio ao escândalo na Justiça, sonatas e sinfonias serviram ao réu como tranqüilizantes e como companhia. Chico fechava os olhos e se deixava levar pela Sinfonia Fantástica, de Berlioz, pelo Concerto de Varsóvia, de Tchaikovsky, pela obra completa de Beethoven e, claro, pela Ave Maria, de Gounod. Muitas vezes, os acordes clássicos serviam como escudo. Com o volume de sua vitrola no máximo, ele abafava, enquanto escrevia, o som dos insultos lançados contra ele por assombrações desarvoradas. Só assim conseguia passar para o papel, com alguma tranqüilidade, os ditados do outro mundo.
Chico Xavier encarou o piano e tomou a decisão: aceitaria o instrumento e aprenderia a lidar com ele. Num impulso, contratou uma professora particular e marcou a primeira aula para o dia seguinte. Afinal de contas, por que não se dar este prazer? Ele merecia uma folga. Após os artigos em sua defesa nos jornais e o veredicto do juiz, o trabalho tinha triplicado. A legião de doentes à sua procura aumentava a cada semana.
No dia da aula de piano, ele tomou um banho demorado, vestiu seu melhor terno e cruzou os braços à espera da professora.
As visitas chegavam e iam se sentando por ali. Chico pedia calma.
- Hoje vou ter a primeira aula. Acomodem-se. Esperem um pouco.
Cegos, leprosos, pobres de cidades vizinhas se apinhavam na porta, faziam fila. A multidão crescia. A professora demorava a chegar.
Antes dela, o aluno viu Emmanuel.
- O que é isto, Chico? Alguma festa?
O candidato à pianista gaguejou.
- Não. É que eu resolvi tomar umas aulas de piano.
- E esses sofredores que estão aí? Vieram assistir à aula?
Chico ficou sem resposta.
- Quer dizer que essa gente toda que está aí sofrendo, angustiada, ficará aguardando o dia em que você resolva atendê-la?
Quando a professora chegou, Chico se desculpou, agradeceu e se despediu. Não poderia perder tempo.
No fim do ano, o ex futuro aluno de piano não resistiu e arriscou um vôo mais comedido. Pediu ao vizinho de mesa na Fazenda Modelo, o músico e escrevente Oswaldo Gonçalo do Carmo, aulas de teoria musical. Queria estudar as notas, tons, semitons, escalas. Empolgado, chegou a confidenciar ao mestre:
- Se aprender música, Conseguirei completar a sinfonia de Schubert.
Oswaldo se empolgou com a perspectiva de produzir um gênio. E ficou impressionado com o aluno. Chico aprendeu, em três meses, o que poucos aprenderiam em um ano.
E parou. A sinfonia de Schubert ficaria incompleta.
Chico queria relaxar, mas era impossível. Seu nome, já estampado na capa de 25 livros, começava a gerar dinheiro mesmo contra sua vontade. Em 1947, a irmã dele, Zina, foi procurada pela polícia de Belo Horizonte. Precisava identificar o "Chico Xavier" que atraía multidões num bairro populoso da cidade. O curandeiro cobrava trezentos cruzeiros por sessão e cem por passe e vendia exemplares autografados das obras de Emmanuel, Irmão X e André Luiz. Foi desmascarado a tempo.
Os charlatões estavam à solta. Chico vivia numa espécie de "prisão domiciliar". A fama custava caro, tomava tempo e espaço, acabava com a liberdade de ir e vir do porta voz dos mortos. De vez em quando, ele fugia para o cemitério ou o açude em busca de privacidade. Precisava de um pouco de paz para escrever seus livros e cumprir o combinado com seu "patrão" invisível.
Em 1947, conseguiu pingar o ponto final no trigésimo título, Volta, Bocage. Um alívio tomou conta dele. Eufórico, viu Emmanuel se aproximar e perguntou se a tarefa já estava encerrada.
O guia sorriu e anunciou:
- Começaremos uma nova série de trinta volumes.
Chico respirou fundo e obedeceu desanimado. Quanto mais escrevia, mais ficava encurralado. As mentiras o cercavam. Previsões falsas eram atribuídas a ele e até mesmo textos apócrifos eram divulgados como seus. Em 1949, um livro assinado por um certo André Luiz chegou às livrarias com um prefácio enriquecido pela colaboração direta de Chico Xavier. Tudo mentira. O escritor de Nosso Lar nem conhecia a médium responsável pela publicação.
Sua casa era pequena para tantos visitantes. O telefone tocava insistentemente e cartas chegavam, às bateladas, todos os dias. Alguns envelopes guardavam surpresas desagradáveis.
Remetentes aconselhavam o protegido de Emmanuel a se desligar do espiritismo antes de ser engolido pela vaidade. Espíritas acusavam sinais de exibicionismo em Chico Xavier e também identificavam nos seus textos evidências de "cansaço". Algumas cartas, enviadas do Sul por "confrades" espíritas, sugeriam sua aposentadoria. Ele engolia em seco e ia em frente.
De vez em quando, era procurado por algum político interessado em seu apoio nas campanhas eleitorais em troca de ajuda financeira às "campanhas beneficentes". Chico escutava as propostas, se esquivava de todas com educação e comentava com os amigos mais íntimos:
- As sereias estão cantando.
Em carta enviada ao então presidente da Federação Espírita Brasileira, Wantuil de Freitas, desabafou: "Uma pessoa importante é sempre perigosa. Se pode trazer muito bem, pode trazer igualmente muito mal".
E revelou sua postura diante dos poderosos: a de funcionário do Itamaraty.
Com diplomacia, ele evitava atritos e conquistava aliados. O empresário carioca Frederico Figner, proprietário da Casa Edison e introdutor do fonógrafo no Brasil, era um deles. Tão rico quanto espírita, ele trocou cartas com Chico Xavier dezessete anos seguidos. E o ajudou muito. Sem suas doações, o datilógrafo da Fazenda Modelo não conseguiria atender tanta gente. A cada mês, o filho de João Cândido gastava o correspondente a três vezes o seu salário só com assistência social.
Para Chico, os ricos deveriam ser considerados "administradores dos bens de Deus".
Ao longo de sua vida, ele ajudaria muitos milionários "benfeitores" a canalizar os "tesouros divinos" para a caridade.
Numa de suas idas a Pedro Leopoldo, Figner perguntou a Chico qual era o seu ideal. Ouviu dele a resposta espiritualmente correta:
- Meu ideal é viver o Evangelho de acordo com Nosso Senhor Jesus Cristo e servir humildemente ao homem.
Figner insistiu:
- Está certo, está certo. Esse é o seu ideal espiritual. Mas eu queria saber se há aqui no nosso mundo mesmo, o material, algum objetivo que você gostaria de alcançar.
O empregado de Rômulo Joviano foi franco:
- Ora, meu caro, se dependesse de mim, eu gostaria de ter uma renda de trezentos mil réis mensais para poder me dedicar aos necessitados livre e despreocupado em relação à vida material.
Figner nunca mais tocou no assunto. Continuou acumulando milhões, enquanto escrevia artigos em jornais espíritas contra o catolicismo e a favor do espiritismo.
Em 1947, ele morreu. Antes de se retirar para o outro mundo, deixou para as filhas, em testamento, 35 mil contos de réis e reservou cem contos para Chico. A quantia tinha razão matemática: se o funcionário da Fazenda Modelo depositasse o dinheiro no banco, a soma renderia, em juros, exatos trezentos mil réis mensais.
Quando Chico abriu o envelope enviado pelo advogado da família Figner e encontrou o cheque, ficou em pânico:
- Senhor? Que será que este dinheiro quer fazer comigo?
A herança chegou logo após uma reunião de família das mais tensas. João Cândido não tinha como pagar o imposto da casa onde moravam. Deviam oito mil réis ou seja, 7% do total mensal que estavam prestes a receber apenas de juros. O escrevente da Fazenda Modelo nem pensou duas vezes. Enfiou o cheque num envelope e o mandou para o endereço de origem. João Cândido se arrependeu amargamente de não ter internado o filho enquanto era tempo. Já não dava mais. O garoto tinha 37 anos.
Dias depois, os cem contos voltaram às mãos de Chico Xavier, acompanhados de uma carta das filhas de Figner. Não aceitariam o dinheiro de volta, iriam cumprir as ordens do pai, apesar de serem católicas. Afinal de contas, foi o último desejo dele. Chico já sabia dizer "não". E insistiu na recusa. Nova devolução. Nova carta.
O toma lá dá cá só terminou quando Chico Xavier sugeriu às filhas de Figner que elas enviassem o dinheiro direto para a Federação Espírita Brasileira. A quantia ajudaria na instalação de novas oficinas para o livro espírita. Em carta a Wantuil de Freitas, ele comunicou a doação e ainda se deu ao trabalho de tranqüilizar o presidente da FEB:
- Nada me falta e não é sacrifício nenhum da minha parte, porque, providencialmente, Jesus me aproximou do nosso amigo Manoel Jorge Gaio, que tem me auxiliado a sustentar a luta. Se os deveres aumentaram para mim, aumentou a sua proteção, porque o Sr. Gaio me provê do que preciso. Sua senhora, D. Marietta Gaio, chama-me 'filho", ajudando-me também com sua ternura e abnegação.
Chico pedia apenas um favor ao amigo: discrição.
Obedecia a uma orientação de Emmanuel: "Fazer com uma mão o bem, de tal forma que a outra mão não veja".
O segredo vazou. E Chico foi "recompensado" com uma série de cartas anônimas endereçadas contra sua decisão de dispensar a herança. Os adjetivos mais educados eram "pedante", "ingrato", "orgulhoso". O destinatário já estava acostumado. E se consolava:
- O que eu preciso é de um bom travesseiro na consciência para dormir com tranqüilidade, e esse tesouro, graças a Jesus, não me tem faltado.
Quatro meses depois, Chico recebeu a visita de Frederico Figner. O ex milionário apareceu do além pronto para colocar no papel suas primeiras impressões sobre o outro mundo. Já tinha até um título na cabeça para suas memórias: Voltei. Voltou para o "outro mundo" decepcionado. Chico recusou a missão e pôs a culpa em Emmanuel.
Seu guia considerava o projeto prematuro. Só dois anos mais tarde o livro chegou às lojas. Mas, antes, o escritor submeteu os originais às filhas do empresário.

CONTINUA AMANHÃ

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