CONTINUAÇÃO
do ilustre e saudoso Humberto de Campos sentado numa banheira, com a mão esquerda sobre a testa, como se estivesse em transe mediúnico. Só faltava estar nu. A imagem se espalhou por meia página da publicação no dia 12 de agosto, onze dias antes da sentença do juiz. A legenda era espalhafatosa: Sensacional flagrante de Chico na banheira. Ele procurava as almas, quando Jean Manzon o surpreendeu. obtendo um impressionante documento para o próximo julgamento.
Os adversários do espiritismo afirmam que é uma prova de farsa. Os espíritas, que é outra prova: o espírito desce seja onde for.
Outro "flagrante" exibia Chico deitado em sua cama estreita, com um livro aberto nas mãos. A legenda: "Ele lê e muito. Dizia-se Humberto de Campos, o escândalo que Chico é um ignorante, analfabeto, pouco amante das belas letras. Pura invenção. Chico lê tanto que um dos seus olhos foi atingido por cruel catarata inoperável. Mesmo assim continua lendo ".
O rapaz também se expôs diante da escrivaninha, com lápis em punho, em meio a um amontoado de livros, O texto abaixo da foto era comprometedor para quem estava sob suspeita de imitar o estilo alheio: Outra peça de notável valor documental é esta: a biblioteca de Chico, onde encontramos livros de muitos autores, escritos na vida de seus criadores. Esses mesmos cavalheiros transmitem, segundo Chico, novas e diárias mensagens. Chico, na gravura, aparece copiando trechos de livros que mais lhe agradam.
As frases abaixo de um rapaz de olhos fechados aumentavam o mistério: Nos momentos de transe, os seus olhos se fecham ou se tornam nublados, como os de um morto. Dizem os adeptos de Kardec que a alma chegou. Dizem os céticos que é um caso médico. De qualquer forma, é impressionante ver aquele homem de pupilas brancas. Que dirão os juízes?
O texto de David Nasser, intitulado "Chico, Detetive do Além ", era bem menos contundente do que as imagens e legendas.
Logo no início, ele tratava de quebrar as expectativas do leitor: O senhor, leitor amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a resposta que há tanto tempo procura: "É Chico Xavier um impostor ou não é "? E dirá . "Dei 1.500 por esta revista e não consegui desvendar o mistério?" Sim, o mistério continuará por muito tempo.
Após definir seu objetivo, mostrar o homem Chico, ele cobriu o rapaz de adjetivos: adorável, cândido, maneiroso, humilde, um anjo de criatura.
Estranho. Tantos elogios esbarravam em contradições apontadas no escritor do outro mundo. Na reportagem, um amigo de Chico, vindo do Rio, definia o mineiro como "um rapaz de cultura", capaz de ler um pouco de inglês e francês, e revelava:
"Devora os livros com fúria. Trouxe-lhe, há dias, O Homem, Esse Desconhecido, e ele não gastou mais de quatro horas e meia para ler o volume gordo".
Parágrafos depois, aparecia o diálogo entre o jornalista "estrangeiro" e Chico:
- Chico, você lê muito?
- Não. Só revistas e jornais.
- O outro me disse...
- Disse o quê?
- Nada.
Natividade "traduzia" as perguntas escorregadias do "americano".
- Você não pensa em se casar, Chico?
- Eu, casar? Claro que não.
- Não namora?
- Nunca.
- Por quê?
- Não há razões, não gosto, tenho outras preocupações.
O trio vasculhou os três quartos, a sala, a cozinha, a intimidade de Chico. Visitou o banheiro do lado de fora, no quintal, ao lado do galinheiro, e tratou de expor ao máximo o réu do processo movido pela família de Humberto de Campos. Chico aproveitou a presença dos "estrangeiros" para desabafar.
O pior, hoje em dia, é a onda de gente que vem do Rio, de São Paulo, de todos os estados. Não posso deixar de recebê-los, pois fico pensando que vieram de longe e necessitam de meu consolo. Mas isto toma tempo. Como se não bastassem essas preocupações, o telefone interurbano não pára dia e noite. "Chico, o Rio está chamando... Chico, Belo Horizonte está chamando... Chico, Cachoeira está chamando." Evito atender, mesmo constrangido. Meu Deus... Eu não quero nada, senão a paz dos tempos antigos, o silêncio de outrora. Quero ser de novo aquele Chico sossegado e tranqüilo que apenas se preocupava com as coisas simples...
Após uma hora e meia de entrevista, Jean Manzon, David Nasser e o "intérprete" se despediram do entrevistado. Enganaram o "idiota" e ainda ganharam livros de presente.
Jogaram os exemplares na mala e saíram às pressas, eufóricos. No dia seguinte, estavam no Rio.
A reportagem foi publicada no dia 12 de agosto com uma lacuna estranha. Ela não mencionou como os jornalistas conseguiram passar o vidente para trás. Nasser jogou fora a chance de lançar a dúvida: Se Chico tem um guia e tem acesso aos espíritos, como foi enganado tão facilmente?
Chico leu o texto e ficou apavorado, O juiz não teria dúvidas. O rapaz já imaginava o veredicto: todos os indícios levam a crer que Francisco Cândido Xavier imitou o estilo de Humberto de Campos. Culpado. Sacudia-se, em meio à violenta crise de choro, quando Emmanuel voltou. Estava inspirado:
- Chico, você tem que agradecer. Jesus foi para a cruz e você foi só para O Cruzeiro.
O réu não conseguiu achar graça. Por que Emmanuel não evitou aquele vexame?
Por que não desmascarou a fraude e revelou a identidade dos jornalistas?
Só trinta anos depois, uma reportagem publicada por O Dia, em 28 de abril, e assinada por João Antero de Carvalho, revelaria, em detalhes, os bastidores daquela saga de David Nasser e Jean Manzon. A confissão foi feita por um Nasser arrependido, o mesmo capaz de definir Chico Xavier como "o maior remorso da minha vida".
O repórter voltou no tempo e reconstituiu a noite em que passava para o papel seu furo jornalístico, dois dias depois do encontro com Chico Xavier. Já era madrugada, quando ele foi interrompido por um telefonema de Jean Manzon. O fotógrafo parecia nervoso.
- David, você trouxe aquele livro que o homem nos ofereceu?
- Claro que sim.
- Pois bem, abra-o na primeira página e leia a dedicatória. Nasser largou o telefone fora do gancho e, curioso, correu à procura de seu exemplar. Levou um susto ao deparar com a frase:
“Ao irmão David Nasser, oferece Emmanuel".
Que negócio é esse, Manzon, alguém revelou nossa identidade?
O fotógrafo e o motorista também foram pegos de surpresa. Diante do mistério, os três fizeram um pacto de silêncio. A reportagem saiu sem aquele episódio.
Segundo Nasser, a verdade, em jornalismo, era menos importante do que a verossimi-lhança.
Onze dias após a publicação da reportagem em O Cruzeiro, o juiz João Frederico Mourão Russel bateu o martelo:
Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo após a morte, mas o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo de cujus em vida.
A viúva de Humberto de Campos bateu o pé. Ao recorrer, ela esqueceu daquela história de pedir a opinião do juiz sobre a autenticidade das mensagens atribuídas ao marido e decidiu ela mesma fazer o seu julgamento. Após ter examinado de perto, com a colaboração dos filhos, as "produções ditas psicografadas, a fim de lhes aferir o valor literário", ela chegou a uma conclusão definitiva:
O resultado foi o mais lastimável possível. A obra é profundamente inferior. E não só está eivada de imperdoáveis vícios de linguagem e profundo mau gosto literário, como é paupérrima de imaginação e desprovida de qualquer originalidade. Além disso, o que é aproveitável não passa de grosseiro plágio, não só de idéias existentes na obra publicada em vida do escritor, como de trechos inteiros, o que é de fácil verificação.
O advogado de Chico Xavier e da Federação Espírita Brasileira estranhou a segurança de Catarina Vergolino dos Campos. Se era tão patente assim o valor profundamente inferior da obra psicografada, por que a viúva, diante de mistificação tão grosseira, pediu ao juiz um exame minucioso para declarar, em sentença, a autenticidade ou falsidade da obra atribuída ao espírito de Humberto de Campos? Por que intelectuais tão importantes do Rio apoiaram o autor do Parnaso?
A defesa terminava com um apelo: Basta de dissensões, litígios e desarmonias. Basta de sofrimentos e horrores. O mundo geme ainda sob os destroços e as ruínas de uma guerra gigantesca. A humanidade, angustiada, anseia pela pacificação dos espíritos, farta de tantos desequilíbrios e de tantas injustiças. Que, no Brasil, cada cidadão, tranqüilo e seguro no aconchego de seu lar, possa adorar a Deus a seu modo, segundo a sua fé e a sua crença.
No dia 3 de novembro, a sentença do juiz João Frederico Mourão Russel foi confirmada no Tribunal de Apelação do antigo Distrito Federal: os direitos da pessoa acabam após a morte.
No ano seguinte, Humberto de Campos estaria de volta são em salvo. Mas seu novo livro, Lázaro Redivivo, exibiria na capa um pseudônimo: Irmão X.
Humberto de Campos Filho, 33 anos depois, encontrou-se com Chico Xavier, lhe deu um abraço forte pelos cinqüenta anos de trabalho e chorou.
Tive vontade de dizer como Gorki diante de Tolstoi:
- "Veja que homem maravilhoso existe na Terra".
Chico ainda agradecia a Deus e ao advogado pelo final feliz da polêmica Humberto de Campos quando foi surpreendido por um presente: um piano novo em folha enviado do Paraná pelos donos da fábrica Brasil. Os empresários apostaram num dos boatos da temporada: no fim da vida, ele embalaria a Terra com músicas ditadas por compositores consagrados do além. Tocaram num ponto fraco de Chico.
CONTINUA AMANHÃ
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