sábado, 21 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER- HUMBERTO DE CAMPOS - O ESCANDALO - PARTE 1


HUMBERTO DE CAMPOS, O ESCÂNDALO

No início do ano, Chico Xavier abriu um envelope enviado pela Oitava Vara Cível do Rio de Janeiro e levou um susto. A viúva e os três filhos de Humberto de Campos moviam um processo contra ele e a Federação Espírita Brasileira. Como titulares dos direitos autorais da obra do escritor, exigiam explicações. As livrarias espíritas expunham nas prateleiras cinco obras  "ditadas pelo espírito de Humberto de Campos a Francisco Cândido Xavier ", duas delas já em terceira edição sem que ninguém, até aquele momento, tivesse se dignado a conversar sobre dinheiro com eles.
A situação da viúva, Catarina Vergolino, era incômoda: não podia assistir quieta à publicação de livros assinados pelo marido, pois ainda mantinha contrato com a editora da obra produzida por ele em vida, a W. M. Jackson. Diante de seu silêncio, os editores poderiam até pensar que ela lucrasse com os títulos póstumos de Humberto de Campos. Após expor os motivos para o processo, a herdeira do escritor lançou ao tribunal uma questão delicada.
As cinco obras atribuídas ao espírito do escritor foram mesmo ditadas pelo morto?
Catarina era exigente. Pedia "todas as provas científicas possíveis ", exigia demonstrações mediúnicas para  "verificação da sobrevivência e operosidade do espírito de Humberto de Campos, propunha exames gráficos e estilísticos dos textos escritos por Chico Xavier e requisitava depoimentos dos envolvidos, além de provas testemunhais.
Chico ficou em pânico: não poderia convocar espíritos para depor.
A notícia do processo correu por Pedro Leopoldo e desandou em boato: Chico estaria prestes a ser preso. O rapaz teve vontade de correr para o mato e de se esconder atrás da primeira moita. Tremia só de imaginar a cadeia, a humilhação, o escândalo. Rezou, rezou e viu, mais uma vez, Emmanuel. Diante da aparição, iniciou o interrogatório.
Serei preso aqui, em Belo Horizonte ou no Rio? Se for aqui, talvez sofra menos, porque sou conhecido, mas se for no Rio...
O recém chegado não conseguiu disfarçar o riso nem evitar as velhas metáforas.
- Meu filho, você é planta muito fraca para suportar a força das ventanias. Tem ainda muito que lutar para um dia merecer ser preso e morrer pelo Cristo.
O processo prometia. Se o juiz renegasse a autenticidade dos textos, Chico e o presidente da Federação Espírita Brasileira estariam sujeitos a pagar indenização por perdas e danos e a ser presos por falsidade ideológica. Se o "meritíssim"o " reconhecesse os livros como obras do além, atestaria a existência de vida após a morte e teria de decidir se os direitos autorais deveriam, ou não, ser repassados aos herdeiros do morto vivo.
A Federação Espírita Brasileira pediu socorro ao advogado Miguel Timponi. A defesa contestou todos os pedidos da acusação. O argumento básico era simples: não era função do Poder Judiciário declarar, por sentença, se uma obra literária foi escrita ou não por um morto. Um veredicto, contra ou a favor do réu, iria ferir a liberdade religiosa garantida na Constituição.
Resumindo: "O petitório é ilícito e juridicamente impossível".
Apesar de negar a validade do processo, o advogado aproveitou a deixa de Catarina para defender espíritos e espíritas. Como testemunha em favor dos réus, ele "convocou" ninguém menos do que Humberto de Campos (espírito). O "ex-imortal" parecia ter previsto as futuras complicações jurídicas sete anos antes, quando ditou a Chico Xavier o prefácio de seu primeiro livro espírita, Crônicas de Além-Túmulo. No texto, ele comemorava o fato de estar livre dos contratos com sua editora e festejava os privilégios de escritor-fantasma: "Enquanto aí consumia o fosfato do cérebro para acudir aos imperativos do estômago, posso agora dar o volume sem retribuição monetária".
Até os réus Chico Xavier e Federação Espírita Brasileira mereceram elogios. Os dois, segundo Humberto, eram exemplos de honestidade, generosidade e dedicação à assistência social. O dinheiro arrecadado com o livro seria bem usado.
Timponi não só desencadeou este texto como colocou diante dos olhos do juiz um inédito escrito por Chico Xavier e assinado por Humberto de Campos em meio à pendenga judicial. O escritor dava mostras de cansaço no artigo de 15 de julho. Parecia magoado com os filhos:
- Eles não precisavam movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida?
Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas sem maior significação?
Em momento algum citava a viúva.
A imprensa abriu espaço para a polêmica. Chico Xavier voltou às páginas dos grandes jornais com estardalhaço ao lado de notícias sobre a Segunda Guerra Mundial.
As bombas caíam sobre a Europa e sua mediunidade era vasculhada mais uma vez pelos jornalistas.
O escritor Mário Donato assinou um texto nada imparcial em O Estado de S. Paulo, no dia 12 de agosto de 1944. Não tinha dúvidas: "Ou se aceita Humberto subsistindo no outro mundo ou se aceita Chico Xavier valendo por um Humberto e mais meia dúzia de cérebros arquiprivilegiados".
A mãe de Humberto de Campos, Anna Veras, tomou partido do réu em entrevista a O Globo:
- Li emocionada o livro Crônicas de Além-Túmulo e verifiquei que o estilo é o mesmo de Humberto. Se os juizes decidirem que a obra não é dele, mas de Chico, acho que os intelectuais patriotas fariam ato de justiça se aceitassem Francisco Xavier na Academia Brasileira de Letras.
Um acadêmico, o crítico Raimundo Magalhães Júnior, entrou na roda em A Noite.
De olho nos poemas de Parnaso de Além-Túmulo, deu o veredicto: "Se Chico Xavier é um embusteiro, é um embusteiro de talento. Para um homem que fez apenas o curso primário, sua riqueza vocabular é surpreendente".
O cronista Edmundo Lins também se debruçou sobre o livro de poemas para julgar a capacidade de Chico escrever ou não textos ditados pelo espírito de Humberto de Campos. Em artigo em O Globo, ele confessou-se impressionado com os poemas atribuídos a Belmiro Braga. O poeta de Juiz de Fora passou a vida escrevendo quadrinhas, trovas de sabor popular, e ressuscitou no Parnaso de Além-Túmulo como autor de sextilhas, sem perder o tom lírico e satírico, singelo e espontâneo. Se Chico quisesse imitá-lo, por que não adotou a forma habitual do poeta?
Foi necessário um escândalo jurídico para a crítica literária analisar com rigor a obra de Chico Xavier.
O escritor e historiador Garcia Júnior também arriscou palpites em artigo no jornal Correio da Noite. Após ler os vários livros assinados pelo datilógrafo de Pedro Leopoldo, garantiu que, se o rapaz fosse mesmo capaz de criar aqueles textos, não precisaria ser um modesto funcionário da Secretaria de Agricultura de Minas Gerais:
- Bastaria que Chico Xavier viesse aqui para o Rio, mudasse o seu indumento de pobre para uns bons ternos de cavalheiro abastado e entrasse a freqüentar as rodas intelectuais. Com talento para produzir o que já lhe passou pelo lápis, psicograficamente, ele hoje poderia ufanar-se de ser um dos maiores escritores do Brasil...
Amigos de Chico se empolgaram. Alguns perguntavam ao datilógrafo da Fazenda Modelo se ele aceitaria uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Chico levava na brincadeira.
Já admitem cavalos por lá?
Estava bem mais descontraído. Nem desconfiava do próximo capítulo.
Os críticos esmiuçavam os poemas e as crônicas escritos por Chico Xavier, e o juiz estudava o processo Humberto de Campos, quando a dupla David Nasser-Jean Manzon desembarcou em Pedro Leopoldo. O repórter e o fotógrafo mais ousados e mais temidos da revista O Cruzeiro chegaram à cidade dispostos a   "desvendar o homem Chico Xavier". Missão quase impossível: a privacidade do autor do Parnaso de Além-Túmulo era preservada por um círculo fechado de amigos. Durante o processo na justiça, a vigilância tinha sido redobrada. Fotos, por exemplo, só eram permitidas em sessões públicas no centro espírita.
O desafio era um estímulo. Nasser e Manzon iriam romper o cerco. Mas começaram mal: foram direto para a Fazenda Modelo e deram de cara com Rômulo Joviano. O pedido da entrevista foi negado com um não inflexível.
Chico está exausto e precisa descansar.
Jean Manzon, sempre irônico, sugeriu ao patrão do rapaz umas férias para seu empregado. Como troco, recebeu mais uma resposta atravessada:
- O Chico funcionário nada tem a ver com o outro Chico.
Se quisessem mesmo fazer a entrevista, os jornalistas do Rio teriam de esperar até a sessão pública da sexta-feira seguinte. Era sábado. A dupla tinha mais o que fazer. Não podia ficar plantada na cidade mineira uma semana à espera do matuto. Aqueles caipiras não sabiam com quem estavam lidando.
Nasser e Manzon mereciam respeito. Saíram do Rio a bordo do avião do próprio Assis Chateaubriand, dono do império dos Diários Associados, foram recepcionados em Belo Horizonte por Juscelino Kubitschek e engoliram poeira uma hora e meia seguida na viagem de carro de Belo Horizonte até ali. Ou seja: a hipótese de voltar à redação da revista com as mãos abanando era inadmissível.
Para liquidar o assunto de vez, David Nasser, Jean Manzon e o piloto do avião de Chateaubriand, Henrique Natividade, bolaram um plano infalível. Nasser e Manzon se apresentariam como repórteres americanos e Natividade faria o papel de intérprete da dupla. Chico ficaria seduzido pela idéia de ser notícia internacional e se sentiria mais à vontade diante dos estrangeiros. Afinal de contas, a reportagem seria lida longe dali, longe do Rio.
Havia um porém: Rômulo Joviano. O engenheiro conhecia a identidade deles e podia desmascarar o trio a qualquer momento. Precisavam concluir o serviço antes da chegada do patrão de Chico. Mas, mesmo sendo rápidos, eles ainda corriam perigo. E se Rômulo telefonasse para alertar o empregado? Nasser, Manzon e Natividade tomaram a decisão: cortariam o fio do telefone do entrevistado. Dito e feito.
O truque deu certo. Chico escancarou as portas de casa para os "estrangeiros" e posou para fotos então inéditas na imprensa. Jean Manzon fez a festa. Uma das fotografias estampadas em O Cruzeiro, a revista de maior circulação no país da época, exibia o representante

CONTINUA AMANHÃ

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